Nos principais centros da indústria cinematográfica, os adultos mais velhos representam boa parte da bilheteria. Ainda que não se vejam como protagonistas das histórias.
Quando se fala em cinema e a terceira idade, chovem estereótipos. Quando a gente chega aos 50, 60 anos, automaticamente todos os mais jovens acreditam que vamos gostar de assistir “E o Vento Levou” ou as comédias do Mazzaroppi, como se fossem uma escolha sentimental óbvia. Como se todos nós, em todas as épocas, tivéssemos vivido nossa adolescência nos anos 1950. Essa observação crítica é muito bem representada no canal humorístico “Choque de Cultura”, disponível no YouTube. No canal, motoristas de van cariocas debatem o cinema e ao fim de cada ano, promovem o “Carburador de Prata”, premiação estilo Oscar. E uma das categorias é “Melhor Idoso”. Anthony Hopkins geralmente vence.
Partindo da poltrona para as telas, fica pior. Filmes que trazem os 60+ como protagonistas geralmente falam de doenças terminais, ou velhinhos engraçados fazendo coisas absurdas, ou velhinhos bem ranzinzas que chegam a ser engraçados, ou velhinhos assustadores. Se a indústria do cinema se preocupa com quem compra boa parte dos ingressos nas bilheterias, é melhor começar a reler os roteiros que produzem. Mas já é possível também fazer um pouco justiça: está mudando. Os sonhos, as inquietações, o olhar para a vida que passou e o que ainda mudar, a busca por redenção, são alguns dos temas que já ilustram grandes e bons filmes que fizeram sucesso entre espectadores de qualquer idade na última década.
Como no Brasil não existe uma pesquisa aprofundada sobre a idade-média dos frequentadores de cinema, vamos utilizar como exemplo um estudo norte-americano para falar da presença dos 60+ nas salas de cinema. De acordo com a AARP, 30% dos frequentadores assíduos das salas de cinema nos Estados Unidos tem mais de 50 anos. O estudo, conduzido pela empresa Movio, especializada em dados de marketing, foi publicado sob o título “The 50-plus Moviegoer, An Industry Segment That Should Not Be Ignored”. Como sugere o título, não deveria mesmo ser ignorado.
Audiência que cria seus próprios blockbusters
Algumas curiosidades desse estudo americano podem ter alguns paralelos com o público brasileiro: a audiência formada por maiores de 50 podem investir seu dinheiro em ingressos com mais regularidade, dispõe de mais tempo livre para frequentar as salas e são altamente fiéis a seus atores favoritos, o que os torna uma força incrível para a carreira de um filme.
Foi esse público que ajudou até a criar um novo sub-gênero (americano adora esses rótulos): os “thrillers maduros”. São filmes de ação estrelados por veteranos como Liam Neeson, Kevin Costner e Tom Cruise.
Títulos como “Jack Reacher” e “Guerra nas Estrelas”, por exemplo, tiveram 32% do público formado por maiores de 50 anos. Por outro lado, a pesquisa também revelou que 75% dos frequentadores dos cinemas de arte têm mais de 60 anos. E que 54% da bilheteria total de filmes independentes saiu do bolso dos adultos mais velhos. Ou seja, os 60+ querem ação, querem aventura, querem arte, querem filosofar, querem o mundo e querem agora.
E é um público capaz de criar seus próprios blockbusters. “Sully”, dirigido por Clint Eastwood (90 anos), com Tom Hanks (64 anos), sobre a história do piloto de, então com 58 anos, Chesley “Sully” Sullenberger e sua manobra milagrosa no Rio Hudson, arrecadou 124 milhões de dólares. 57% desse valor graças aos 60+ cinéfilos.
No Brasil, não temos números tão precisos. Mesmo a Agência Nacional do Cinema (Ancine), não apresenta pesquisas aprofundadas com dados demográficos sobre os frequentadores dos cinemas no país. E, acredito, deve ser difícil mapear o quanto os 60+ gastaram nos cinemas, já que eles têm direito à meia-entrada, assim como estudantes, professores e outros benefícios dependendo da região – e tudo acaba contabilizado no mesmo balaio. Poucos cinemas apresentam projetos específicos para os maiores de 60. Alguns como o Reserva Cultural, em São Paulo, promovia uma sessão aos domingos a preços bem baixos e ainda incluía café da manhã. Mas isso quando não existia uma pandemia para atrapalhar nossa ida aos cinemas. Nas unidades do Sesc, sessões de cinema são promovidas regularmente, geralmente com valores simbólicos ou gratuitamente. Mas os benefícios para maiores de 60 no Brasil não se estendem muito além.
O fato é que tanto nas salas de cinema ou através dos serviços de streaming, é possível encontrar boas películas onde o envelhecimento é tratado com profundidade, delicadeza e poesia. O crítico de cinema e professor Sergio Rizzo, durante um curso no CineSesc, apontou que “as produções passaram a ser desenhadas pensando no público mais velho e seus dramas. Mas não são filmes sobre idosos. São sobre a vida”, define precisamente o mestre Rizzo.
Pois falemos um pouco da vida
Um grande exemplo dessa tese pode ser encontrado na Netflix e chama-se “Viver Duas Vezes”. Dirigido por Maria Ripoll, conta a história de um professor de matemática que sofre de Alzheimer. Sabendo da finitude de sua memória, parte em busca de uma última conversa, um último olhar para o seu maior amor. Não é possível tratar um filme desse como um filme de idosos. Mas sim um filme sobre a vida, como definiu Rizzo. Afinal, fala de redenção, fala das relações que deixamos pelo caminho e daquelas que não demos a atenção devida. Das escolhas feitas e das surpresas que ainda podem aparecer. Sugiro que assista. Sugiro também que separe uma caixa de lenços junto à pipoca.
O mal de Alzheimer também está presente em um dos filmes mais interessantes do maravilhoso cinema argentino, esse um pouco mais antigo, de 2001: “O Filho da Noiva”. Dirigido por Juan Jose Campanella, tem o cotidiano familiar e os conflitos geracionais como temas centrais. Ricardo Darin é o protagonista, lidando com os problemas de seu restaurante e a vontade do pai que deseja finalmente realizar um sonho de sua esposa de se casar na Igreja, mesmo ela sendo vítima de Alzheimer. A velocidade da vida dos mais jovens se contrapõem com os simples desejos dos mais vividos. E é possível dizer qual merece prioridade? Com o humor trágico portenho, Campanella acaba por nos conduzir por caminhos de esperança.
Durante sua aula, Rizzo também cita os filmes com foco nos homens solitários como um importante filão para, mas não somente, o público 60+. “Gran Torino” (2008), dirigido e protagonizado por Clint Eastwood, é um exemplo. Um homem solitário, cheio de preconceitos, tendo que viver com as transformações do mundo. Mas existe um senso de justiça, uma chama que o conduz a fazer o que acha certo em um planeta onde quase ninguém mais se importa com o próximo.
Rizzo também menciona títulos de jornadas femininas de solidão e redenção, como “Minhas tardes Com Marguerite”, de 2010, dirigido por Jean Becker. Um filme sobre cumplicidade, sobre os laços que ao longo da vida lutamos para manter unidos, que aprendemos quais e quando valem a pena apenas com a bagagem adquirida com os anos vividos.
Outro recém-chegado na Netflix é o surpreendente documentário “As Mortes de Dick Johnson”. O filme nasceu da cabeça de Kirsten Johnson. A diretora perdeu a mãe, vítima de Alzheimer. Ainda não recuperada totalmente de seu desaparecimento, o pai da cineasta, o psiquiatra Dick Johnson foi diagnosticado com a mesma doença. Então a diretora decidiu prestar uma homenagem. Produziu um documentário que encenava diversas situações em que seu pai morria. Isto posto, vemos o senhor de 86 andando tranquilamente pela rua, quando ele tropeça nas próprias pernas e morre ao cair. Ou ainda sendo atingido por um ar-condicionado na cabeça. Mas também o vemos conversando francamente, com toda a honestidade que o tempo nos dá, sobre escolhas da vida com uma antiga namorada. Falar sobre o fim da vida com leveza é também falar sobre viver.
Também disponível na Netflix, o título em inglês é uma poesia só: “Our Souls at Night” (“nossas almas à noite”, numa tradução minha). A tradução oficial brasileira, preguiçosa: “Nossas Noites”. Lançado em 2018, reúne dois ícones como protagonistas: Robert Redford e Jane Fonda. Como dar errado isso? O filme fala sobre solidão e como precisamos, em algumas noites, não de sexo ou de amor, mas apenas alguém para dividir o café, o vinho, falar sobre o dia, os erros e acertos da vida. É uma história sobre companheirismo.
Um mestre em falar da poesia dos relacionamentos na grande tela é o diretor italiano Paolo Sorrentino. Em “A Grande Beleza”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2013, Sorrentino trata das pequenas belezas que deixamos passar pela vida, sempre em busca de algo que não sabemos bem o quê é. Tendo como moldura a bela Roma – uma viagem sem sair de casa, nos sentimos na Cidade Eterna ao lado do protagonista em suas longas caminhadas. Destaco uma passagem. Ao ir para a casa de uma milionária linda, herdeira, porém fútil, o protagonista troca uma noite de sexo por uma caminhada noturna, foge dos lençóis enquanto ela sai para buscar o computador onde está registrado os ensaios fotográficos que ela fez e adora postar nas redes sociais. Ele justifica: “Quando chegamos aos 70 anos, ganhamos o poder de dizer não”. A maturidade nos ensina como queremos passar o tempo que nos resta.
Em seu filme seguinte, o brilhante “Youth” (“Juventude”), Sorrentino reúne gênios como Michael Caine, Harvey Keitel, Rachel Weisz e Paul Dano, que passam seus dias numa espécie de SPA, em busca de paz de espírito e reconciliação com suas trajetórias de vida. Quem sabe, até alguma redenção. Em conversas entre os pares da mesma idade, percebemos de forma um tanto cômica os boletos que nossos corpos nos mandam com a idade. Entre os personagens de gerações diferentes, conseguimos enxergar alguns sentidos da vida. Os diálogos são maravilhosos, a digressão do personagem de Keitel sobre “as emoções serem supervalorizadas” é marcante. Mas preste atenção mesmo em um casal secundário que sempre jantam em silêncio. Esse silêncio e o seu desenrolar dizem muito sobre a vida e o que fizemos dela.
Mais leve em seu roteiro, mas não menos importante em sua filosofia, “A Senhora da Van” é uma história cativante e ainda mais incrível quando descobrimos que é real. A trama fala de uma tal senhora Shepherd, que vive na parte de trás de uma van que muda de tempos em tempos em um bairro classe media de Londres. As relações dos vizinhos com aquela, de uma certa forma, andarilha diz muito sobre a sociedade que nos tornamos. Somente um dos vizinhos, um escritor, a tolera por ali e descobre um pouco mais sobre o seu passado. Tem na Netflix. Assim como “Philomena”, magistralmente interpretada por Judi Dench, sobre outra história real, de uma mulher que busca o filho retirado de seus braços por uma instituição católica. Judi Dench também é a estrela de outro clássico da melhor idade: “O Exótico Hotel Marigold”. Já em “A Dama Dourada”, Helen Mirren arrebenta na história de uma judia sobrevivente da Segunda Guerra Mundial que decide processar o governo austríaco para recuperar o quadro “Woman in Gold”, de Gustav Klimt – retrato de sua tia que foi roubado pelos nazistas durante a ocupação. São exemplos de filmes que não podemos classificar como “filmes para idosos”. Mas sim como filmes sobre a vida.
De volta à pesquisa da Movio mencionada lá no começo desse texto, os estudiosos relataram que as audiências que assistiram “A Dama Dourada” costumam frequentar o cinema 14,5 vezes mais do que quem vai ao cinema para ver “Os Vingadores”, por exemplo. Também relatam que filmes como “Philomena” e “Hotel Marigold”, sobre mulheres mais velhas, para mulheres mais velhas, são sempre sucesso entre os cinéfilos 60+.
O ator José Wilker, que tinha uma vasta coleção de filmes, dizia que não colecionava objetos, mas sim amigos. Quando estava sozinho, nunca se sentia solitário, era só puxar algum amigo da estante e se divertir. Wilker não viveu a era do streaming, hoje podemos dizer que esses “amigos” estão ainda mais fáceis de ser encontrados. Qual o valor dessa companhia em película? Respondo parafraseando um diálogo dos personagens de Robert Redford e Jane Fonda em “Nossas Noites”:
– Existem coisas que não conseguimos consertar. O que devemos fazer sobre isso?
– Podemos tentar conversar.
– O que acha disso?
– Acho uma boa ideia.
Falemos, pois, sobre a vida.