Conecta 60+

Seu filho estava certo: videogame não é só uma brincadeira

Seu filho estava certo: videogame não é só uma brincadeira
[por Alexandre Petillo]

Ferramenta importante tanto para o exercício cerebral como para preparar para o mundo tecnológico, jogos digitais estão cada vez mais presentes na rotina dos 60+

Diante da tela em branco com a missão de escrever um texto sobre como os mais velhos estão cada vez mais aderindo aos jogos digitais, a tentação é grande de sucumbir aos clichês de iniciar dando um tom curioso. Acredite: é mais difícil um jornalista lançar mão de um início pitoresco do que ver uma turma acima de 60 jogando World of Warcraft. O videogame, ou os jogos digitais, como são melhores descritos atualmente, já é uma realidade importante no cotidiano de quem já passou por algumas décadas de vida.

A primeira razão é porque faz bem. Sim. Muito bem. Caro amigo, querida amiga, vocês terão que admitir que estavam errados quando questionavam filhos ou netos sobre o tempo que eles passavam diante da tela. E ouviam de volta: isso não é só uma brincadeira. E não é mesmo. Atualmente, os games auxiliam em exercícios cerebrais, na ginástica das manhãs e preparam para enfrentar o mundo digital. E a presença dos jogos digitais não é uma moda porque em breve, em menos de uma década, teremos como companhia na terceira idade a primeira geração de seres humanos a ter contato com os videogames desde o momento do seu nascimento.

Uma pesquisa de 2018 encomendada pelo portal Statista apontou que 25% dos maiores de 54 anos jogam regularmente. No mundo atual, o acesso aos jogos digitais ficou ainda mais fácil. Não é preciso mais ter um aparelho – um console, como Playstation ou XBox – conectado numa TV. Os jogos estão nos celulares, disponíveis em praticamente todas as plataformas – segundo a pesquisa, 73% dos entrevistados jogam em seus smartphones. Uma outra pesquisa norte-americana, essa de 2016 e realizada pela AARP, apontou que mais de 50 milhões de maiores de 50 anos jogam frequentemente. E as mulheres formam maioria entre os jogadores digitais: 53% do público gamer da pesquisa é feminino.  

Chá com games

As mulheres à frente dessa tropa é uma curiosidade que tem paralelo no Brasil. Os criadores de jogos digitais Jaderson Souza e Tainá Felix realizaram no Sesc Ipiranga, em São Paulo, o projeto “Chá com Games: Games para a terceira idade”, disposto, como o próprio nome sugere, a integrar a terceira idade com o mundo dos jogos digitais. Durante dois meses, Jaderson e Tainá conduziram atividades que misturavam a vivência com videogames e boas conversas – regadas a chá – acerca do conceito de jogo e suas aplicações no dia-a-dia. “Curiosamente, o quórum foi 100% formado por mulheres”, escreveram Jaderson e Tainá.

“Acreditamos que o público feminino dessa geração se permite aventurar-se mais no desconhecido. O videogame ainda é relacionado a ‘coisa de criança’ e, para este público, em especial, ainda mais, por estarem mais distantes dessa vivência como parte de sua rotina. Nossa percepção nos últimos anos é que as mulheres tendem a buscar se integrar com as novas tecnologias de comunicação, dispositivos móveis e etc. Elas querem saber como facilitar suas vidas com os apps de carros de aluguel, compras; ou, como se divertirem com jogos e estarem conectadas às amigas e amigos através das redes sociais. As primeiras turmas eram compostas 100% de mulheres, mas, com o passar do tempo, começamos a perceber a presença ainda tímida de alguns homens. O que nos deixa muito felizes também. Afinal, este é também um movimento de construção de novos conhecimentos para todos os envolvidos da atividade”, contou Tainá Felix em entrevista para o Conecta 60+.

O programa “Chá com Games” nasceu depois de uma provocação da programadora cultural Maria Cristina Vilas Boas, que indagou a dupla sobre projetos voltados à terceira idade. “E foi aí que começamos a pesquisar e planejar. A demanda nos fez construir um programa voltado a este público, com foco na apresentação do universo dos games e suas possibilidades de aprendizado, treinamento e troca de experiências”, lembra Tainá.

Claro que a experiência também rendeu memórias incríveis. “Lembro-me bem de nossa aluna Dona Eda, 85 anos de puro entusiasmo e vontade de aprender. Dona Eda não perdeu uma aula sequer durante os três meses de curso. Jogou de tudo; do Atari aos jogos de movimento com Kinect. Mas ela se divertiu mesmo no dia em que correu no Mario Kart, e disse-nos depois de algumas corridas que ‘aquilo em casa a faria queimar o feijão!’. Essa e muitas outras frases de Dona Eda ficaram como memórias incríveis. Algumas delas serão contadas em nosso livro de crônicas que será lançado em breve”, relembra Tainá e adianta uma novidade.

Memória e Aprendizagem

“Muito se pergunta aos geriatras como retardar o processo de perda de memória e até mesmo o que fazer para evitar a demência, especialmente se houver história familiar da doença. Além do aumento do número de sinapses, os jogos de videogame funcionam como instrumentos de modulação cognitiva, por meio de alterações bioquímicas e na estrutura do cérebro. Entre as áreas estimuladas pelos jogos está a temporal, ligada à memória e à aprendizagem. Recuperam a memória e facilitam o registro de novas informações com melhor desempenho”, explica Newton Luiz Terra, médico geriatra e diretor do Instituto de Geriatria e Gerontologia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em artigo para a Revista E.

Claro que esse movimento atiça a sanha das grandes companhias. Em 2006, a Nintendo colocou no mercado o Brain Games, pensando justamente nesse público e já se tornou um dos títulos mais indicados pelos médicos. Em 2019, os norte-americanos maiores de 54 anos gastaram mais de 3,5 bilhões de dólares em games. Mesmo assim, as grandes empresas ainda não olham para o público mais velho com a atenção merecida.

Tendência de mercado de games para o público sênior é promissor

Em um bate-papo com o Conecta 60+, Thiago Jabur Bittar, um dos principais pesquisadores do assunto no Brasil, professor da Universidade Federal de Goiás e doutor em Ciência da Computação pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo, diz que estamos entrando num momento de transformação no mercado de jogos digitais para a terceira idade. “É natural que as empresas comecem a voltar o olhar para essa classe consumidora, entretanto acreditamos que estamos exatamente no limiar, em que por mais que o olhar das empresas se volte a esse público, os esforços para esse direcionamento etário no meio digital não são uma realidade. Existe, ainda, certo preconceito intrínseco a contextos digitais, especialmente quando envolvem jogos digitais, devido às experiências não agradáveis que o idoso tem em família ou em notícias envolvendo jogos a vícios ou crimes (fraudes e golpes, por exemplo). Digo estarmos no limiar, pois os novos idosos já estão inseridos digitalmente, logo são consumidores em potencial e podem sim usufruir do lazer proporcionado por jogos digitais, ainda mais quando alinhados a algum benefício intrínseco, seja no âmbito de educação ou saúde”, nos conta Bittar.

E ressalta a importância do desenvolvimento de jogos pensados de ponta-a-ponta para o público mais velho, considerando algumas peculiaridades que sofremos com o envelhecimento. “Ocorre que os jogos não devem ser pensados apenas na temática, mas também em toda sua estrutura, desde o princípio, seja utilizando tarefas com tempo adequado, seja o tamanho de artefatos na interface, enfim, são inúmeras questões que envolvem o processo de envelhecimento e o tema acessibilidade”, completa o professor.

Como pesquisas específicas sobre os benefícios dos games para jogadores com mais de 60 anos são raras em todo o planeta, os chamados “serious games” acabam ganhando espaço entre esse público. São games como o Wii Fit ou Wii Sport, que não foram desenvolvidos especialmente para esse público alvo, mas são aproveitados para a prática de exercícios físicos ou tratamentos de reabilitação – os chamados exergames. Na contramão desse movimento, os jogos desenvolvidos especificamente para reabilitação se esquecem de um detalhe importante: acrescentar o ingrediente diversão. Aí, o que era para ser lúdico se torna um tanto enfadonho. Com esse cenário, é possível perceber que o mercado de oportunidades para jogos interessantes para os 60+ encontra-se aberto. Tanto para diversão, como para uma vida saudável.

Gameterapia

De acordo com o projeto “Exergames: Jogos digitais para longeviver melhor”, de Ana Lúcia Nakamura, o Hospital Vita Curitiba, no Paraná, foi o pioneiro no Brasil no uso da gameterapia, que utiliza desde 2009. Com a aplicação dos exergames, a percepção dos profissionais do setor de fisioterapia do hospital é de melhora na funcionalidade do paciente, equilíbrio, coordenação geral e ganho de massa, estimando uma melhora de 15% em comparação aos grupos que não fizeram uso dos exergames.

Outros centros médicos também utilizam a técnica, como a Rede Lucy Montoro, que utiliza jogos dos consoles Playstation e Nintendo Wii na reabilitação de seus pacientes que, enquanto jogam, toleram mais a dor e não prestam tanta atenção nos possíveis incomôdos do tratamento. Outro exemplo é do Hospital das Clínicas da Unicamp, que usa a wiiterapia (terapia com games do console Wii) para corrigir a postura e o equilíbrio, aumentar a capacidade de locomoção e ampliar os movimentos superiores e inferiores, conta Nakamura em seu texto.

Os jogos de videogame também estão sendo usados em tratamentos de pacientes com AVE (Acidente Vascular Encefálico) e Parkinson, tendo alcançado excelentes resultados na reabilitação desses pacientes, que, mesmo com habilidades prejudicadas pela doença, tiveram seu desempenho e suas demandas cognitivas e motoras melhoradas por meio do treino e com o auxílio da realidade virtual.

Bittar desenvolve uma das mais importantes pesquisas sobre como criar um ambiente lúdico adaptativo como ferramenta para proporcionar treinamento cognitivo ao público senescente. O projeto, sob a coordenação do Dr. Leandro D’Agostino Amaral, de São Carlos (SP), foi aprovado para a segunda etapa do PIPE/FAPESP. “Conseguimos desenvolver um teste cognitivo digital convergente aos baseados em papel (com adesão cientificamente válida) e agora estamos na fase de desenvolvimento dos jogos para visão construtiva das habilidades cognitivas dos idosos.
Proporcionar a auto testagem, de modo a calibrar os jogos à realidade do jogador é fundamental para atender às diversas expectativas dos jogadores, de modo a não tornar o jogo enfadonho ou muito difícil, alinhando à realidade do jogador. Nesse contexto, a pesquisa avançou no sentido de propormos uma plataforma que integre o teste cognitivo digital aos jogos em desenvolvimento, com a presença dos idosos em todas as etapas da pesquisa, a fim de alinharmos o desenvolvimento em volta de nosso usuário final”, explica o professor.

Os pesquisadores entraram em 2020 fazendo visitas presenciais com pesquisadores bolsistas e colhendo resultados interessantes na aplicação de jogos experimentais, no entanto a pandemia do coronavírus fez ocorrer uma pausa nesse processo. Mas a pausa que o mundo teve que dar em 2020 freou algumas ideias, mas direcionou para outros caminhos. “Os idosos têm um papel bastante específico, pois foi categorizado como público de risco e por muitas vezes estão totalmente isolados dos familiares, amigos. Nessa situação, muitos se viram obrigados a aprender a utilizar smartphones, tablets e computadores, para continuarem a se comunicarem com seus amigos e familiares. As atividades rotineiras, características desse público, foram revistas e abriram, de maneira abrupta, caminhos para novas oportunidades de interação, por exemplo com jogos digitais, para entretenimento. O potencial dos jogos para evitar transtornos psicológicos é uma realidade e agora, mais do que nunca tem sua importância potencializada”, explica Bittar.

Muito mais do que uma ponte com o mundo externo, os jogos também são importantes para treinar o 60+ para uma realidade cada vez mais digital, com ou sem pandemia. “Os jogos acabam por treinar o usuário no contexto digital, de forma lúdica, propiciando um melhor preparo frente às atividades do dia a dia no contexto digital. Algumas pesquisas mostram um melhor aprendizado dos idosos que começaram a interação digital por jogos. Entretanto os jogos em si podem ser ainda mais relevantes ao idoso, quando associados a elementos de saúde, como é o caso do projeto aqui em desenvolvimento. Acredita-se que por jogos digitais pode-se treinar habilidades cognitivas a ponto de retardar seu declínio no processo de envelhecimento e é a isso que nos atermos e buscamos contribuir. Não basta apenas viver mais, buscamos propor viver mais, com qualidade”, explica o professor Thiago.
Em colaboração com uma equipe da Universidade de São Paulo, o projeto do professor Thiago conseguiu aplicar alguns experimentos com usuários idosos de modo digital e uma plataforma está em desenvolvimento com previsão de lançamento é para final do ano que vem. Nesse caminho, a equipe segue publicando artigos e investigando a área, de modo a valorizar e proporcionar a interação digital de modo adequado a esse público alvo.

Claro que trabalhar e criar esse acesso entre os jogos digitais e os 60+ mexeu com Tainá Felix. “Os programas com a terceira idade ampliaram nossa percepção acerca dos potenciais do jogo como espaço de troca e construção de saber. Mais que um espaço de convivência intergeracional, estes programas nos deram uma visão mais complexa da experiência do jogar. Como construir jogos mais acessíveis a todos os públicos? Como pensar a criação de um jogo digital com narrativas que contemplem a experiências de pessoas que vieram antes de nós, nossos pais, avós, nossos ancestrais? Essas experiências nos mostraram que ser gamer pode ser um conceito mais amplo, cuja a indústria tradicional de games ainda não contempla como um possível foco, por não serem ‘nativos digitais’”, diz Tainá.

Mas além de todos os benefícios mentais, corporais, de autoestima e tudo que falamos, se aventurar no meio dos jogos digitais pavimenta um caminho para uma integração muito importante: geracional. Facilitando uma conexão com netos, filhos, abrindo caminho para um novo tipo de troca, sem conflitos, como em outras décadas. Desde que você, claro, admita, caro amigo, querida amiga 60+, que game nunca foi e, agora, não é só uma brincadeira.

Games favoritos entre os 60+

Antes de escolher um jogo, a criadora digital Tainá Felix deixa uma dica: “Sempre quando pensamos a curadoria de jogos para os cursos e programas com a Terceira Idade, fazemos algumas escolhas importantes: primeiro, se o público nunca teve contato com os jogos, é preciso apresentar experiências que sejam mais simples, sob o ponto de vista da jogabilidade. Por exemplo, já pensou nos jogos de tênis ou boliche dos jogos de movimento? São ótimos para iniciar essa relação de apresentação do universo dos jogos para a Terceira Idade, pois são intuitivos, acessíveis e parte da experiência física das pessoas na vida real. A segunda coisa é contextualizar, nada vem do nada e isso é muito importante para este público. Então, a dica é: traga para o cotidiano!”

World of Warcraft

Jogos de estratégias estão entre os favoritos dos 60+. Esse é um clássico, que também permite jogar online, entre familiares.

War Thunder

War Thunder é um simulador de combates aéreos, navais e blindados, ambientado durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria.

Guitar Hero

Podendo jogar em um console (Playstation, Xbox) ou pelo celular. Pelo console é mais legal, porque pode utilizar uma guitarra de brinquedo como controle. E, numa noite, fazer parte de bandas como Queen, Beatles…

Candy Crush Saga

Um dos jogos estilo puzzle mais bem-sucedidos de todos os tempos, essas balinhas são viciantes.

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